quinta-feira, 28 de julho de 2011

Os meus doentes

Demência, é o seu diagnóstico e quando se trata de doenças mentais é sempre tudo muito difícil, porque nunca sei como alcançá-los, como captar a sua atenção, ou como os impedir de me darem uma galheta.


Disse-me para não me esquecer nunca do nosso trato secreto, porque combinamos trocar isto por aquilo. Na minha mão direita contou oito dedos e quando contou os da esquerda, começou… dois, quatro, seis, oito… 20, tens 20 dedos.
Falei-lhe do apelido que temos em comum, leu o nome na minha identificação e lançou-me um ar muito sério. Depois parou, olhou para mim (medo) e disse que ficava contente por sermos bons vizinhos.
Não consegue dizer nada com nexo, não se lembra do nome da mulher nem do filho, arranca cateteres com dentes e fica imobilizado na cama, preso pela cintura e braços (detesto fazer-lhes isto) para que pelo menos durma sossegado, sem saltar grades, ou arrancar algálias.
Ás vezes sorri-me quando lhe falo de comida, mas diz que não tem apetite. Quando insisto com ele para que coma tudo até ao fim, grita-me para que pare, e pare já! Hoje caminhou comigo de mão dada (que ficou roxa) pelo corredor, falou e falou. Não sabe em que ano estamos, não sabe que dia é hoje, nem se é inverno ou verão. Não sabe onde está, nem porque está ali. Nem sabe quem é, como se chama, se voltará a ser livre.
Não sei o que lhe aconteceu até ficar assim, até chegar a este ponto de completa ausência existencial. Não é violento, ou pelo menos não o foi até ao momento, mas tem aquele olhar fixo, perdido, descontrolado, como se nada fizesse sentido e já nada lhe importasse.
A esta hora já deve ter levado uma injecção para dormir, todas as noites a mesma coisa, sem ela fica muito agitado e aflito. A noite torna tudo ainda mais assustador, o escuro, o silêncio. Por volta das 5h vai acordar, não grita, mas tentará levantar-se a todo o custo, lutando contra o seu próprio corpo, e às 7h fará mais medicação para se acalmar. Todos os dias, um atrás do outro, até que as melhoras cheguem, ou pelo menos o tragam um pouco mais para o mundo.
Eu não consigo não pensar nele. Amanhã quando chegar, vamos passear novamente pelo corredor, no fundo desejo muito encontr
a-lo melhor, mais lúcido. Mas é apenas esperança, ela existe, mas é pequenina e frágil. Talvez a nossa lucidez o seja também.



3 comentários:

Dulce disse...

Pungente. Memórias de momentos de alguém muito próximo...

Carla Morais disse...

Bem vinda de volta, Di. Se todos temos uma missão no mundo, a sua parece mesmo ser esta. Um anjo de ternura.

Bacouca disse...

Querida Di,
A falta de lucidez como torna as pessoas? Absortas de tudo mas não haverá dentro dela uma fibra de sentimento a vibrar? A falta de lucidez apavora-me porque as pessoas são alheados do mundo.
Este, e uma vez mais, teve a sorte de encontrar a Di.
A sua missão é espalhar essa ternura, essa compreensão, esse carinho!
Beijo
Mãe Becas

 
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