sexta-feira, 28 de outubro de 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

F. senhora professora*

A primeira vez que a F. esteve internada no serviço era um verdadeiro bichinho carpinteiro. Não parava quieta nem se calava por um minuto, uma energia incrível para alguém tão doente quanto ela. Acabou por passar por mais uma cirurgia, vivia o seu terceiro cancro mas ela acreditava que ia ficar bem. Eu adorava falar com ela, uma senhora culta, professora primária, com uma amor por crianças incondicional, e por isso tínhamos sempre pano para mangas nas nossas conversas sem fim.

Ela acabou por ter alta, mas semanas depois voltou a ser internada. A F. vai morrer, percebi mal olhei para ela outra vez. O cancro tem cara, e numa fase terminal tem forma e tem cheiro, e quando a vi chegar ao serviço novamente, percebi que ele tinha ganho a batalha sobre ela.

Hoje a F. já nem comeu, já não fala nada, nem quando lhe peço que complete comigo as preposições… ainda puxo por ela, chamo-a de minha professora, digo-lhe que levantei o dedo e quero falar, começo a dizer-lhe, a, ante, após, até… e a seguir vem qual? Mas ela fica a olhar para mim, com um olhar perdido, e tenta falar mas perde-se, apaga-se e desiste. Faço-lhe sopinhas de leite com pão com manteiga como ela gostava tanto mas ela não quer comer. Ela não quer que lhe toquem, ela não quer tomar banho, ela não quer água.

O senhor doutor, mandou-me entubá-la hoje (era tão bom que ele perdesse algum tempo ao pé dela para perceber como isto é macabro) mas eu orgulhosamente recusei-me a faze-lo. Não o fiz nem farei, nem eu nem nenhum dos meus colegas (e que orgulho senti deles também). A F. não vai sofrer mais, no que depender de mim, vai ficar quentinha na cama, hidratada com soro, limpinha, cheia de amor e festinhas que não lhe cansamos de dar. E a morte há de chegar, e até vai vencer, mas não será com dor, nem sofrimento, nem com falta de mãos dadas à dela.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pi*

E depois há aqueles amigos que nos conhecem desde sempre, com quem não estamos há demasiado tempo, mas que de repente chegam, falam e dizem tudo. E quase parecem adivinhar o que está para vir de tão certeiras que são as suas palavras*

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

R*

Hoje fui visitá-lo ao hospital onde esta internado desde 1 de Junho. Desde então que o R. vive entre quatro paredes de gente atarefada e sem tempo. Conhecemo-nos há cerca de um ano atrás, quando fui eu quem cuidou dele, ainda a sua doença não tinha avançado tanto. E hoje lá o reencontrei, sorridente e de braços abertos para me abraçar, e os meus também se abriram antes mesmo de lhe chegar perto. Abracei-o com força e por muito tempo e senti-o chorar. E então ficamos assim, eu a dar-lhe colinho. Depois sentei-me ao seu lado, peguei-lhe na mão e pedi-lhe para me contar tudo. Então, ele começou a dizer-me, que ia ficar bom, que ia voltar a estudar, que tinha que ser descoberto que raio de doença é esta que lhe tira as forças, o equilíbrio, lhe rouba os anos de juventude e o obriga a viver prisioneiro num hospital. E ele falou, e sorriu, e senti-lhe os olhos brilharem de esperança. Disse-lhe que tinha orgulho nele. Pensei no ridículo dos meus problemas perante isto, mas pensei mais ainda na felicidade que me trouxe encontrá-lo e dar-lhe amor.

Quando me vinha embora ele gritou e disse:

- Di, ainda vamos passar uns dias todos ao Farol! E vou fazer peixe grelhado e vamos passar o dia todo dentro de água! Não vamos?

E vim embora a pensar nisto. É que o R. dentro de 2 meses vai viver para uma unidade de cuidados continuados, porque os pais não podem cuidar dele, nem a cadeira de rodas passa as barreiras da sua casa. Mas ele acredita, acredita que um dia tudo vai passar e ele vai voltar a ser o que era, e isto para mim chama-se esperança, uma esperança cheia da maior força do mundo, a dele.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Da felicidade


Quando se está feliz as portas fechadas abrem-se, os antipáticos parecem ganhar sorrisos, a falta de estacionamento não nos incomoda, a conta bancária quase a zeros não importa. Quando o coração está cheio, o pensamento fica sem fronteiras cheio de sonhos, desejo e ansiedade.

Quando se está feliz o dia e a noite confundem-se, a fome não chega, não surge impaciência, nem insónias, nem agitações. Os turnos acumulados não trazem cansaço, a saudade não agonia, a praia sabe ainda melhor, a ternura do toque do sol é ainda mais quente. Quando se está feliz, fecha-se os olhos e chega-se perto de todos os que estão longe. E imaginamos o momento do reencontro, vezes sem conta, porque a felicidade é partilhada, é nossa.

Quando se está feliz o tempo não demora a passar e o dia nunca começa cedo demais. Os vizinhos não fazem barulho, a casa nunca se suja, o telefone não demora a tocar, o silêncio é bom conselheiro, e a nossa vida parece ter mesmo sentido.

Quando se está simplesmente feliz.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pronta.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Pontuação

Não gosto de pontos de exclamação no fim das frases. Parece que me estão a gritar ou a convencer. Mas gosto de pontos finais, de vírgulas, de pensamentos que pareciam terminados mas que um ponto depois começarem de novo a ganhar vida. Nem sei bem como é que nos deixamos moldar assim, como é que deixamos que abalem as nossas convicções na vida, como é que facilmente esquecemos aquilo que já tínhamos aprendido. Como o não vale a pena, o não vale mesmo a pena, fica aqui a bailar na mente como se ela pudesse de alguma forma apenas estar confusa. Queremos sempre uma vírgula quando não se conquistou o que se queria. E continuamos o texto, na busca do final feliz. Mas não vale a pena, não merece o esforço da criatividade, há alturas em que a historia termina, de forma diferente daquela que se tinha imaginado ao inicio, quando tudo ainda fazia sentido e onde se adivinhava um texto rico e feliz. Depois da casmurrice, da insistência, de certa forma até, de se passar por cima do que se acredita e defende, chega a altura de se esgotarem as vírgulas, de se parar de dar uso ás reticências e de se assumir de uma vez por todas que chegou a altura do parágrafo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Amor

Eles vieram de férias mas ela caiu à chegada a Portugal, ainda no aeroporto uma queda grande, que lhe provocou uma grave fractura. Velhinhos, holandeses, não falam uma palavra de Português e ele tenta falar um pouco inglês, mas quase nada.

Entraram pelo serviço ás 3 da manhã, ela cheia de dores, ele exausto. Ela falava comigo em agonia, uma língua de trapos. Foi uma comunicação difícil a nossa. Eu explicar-lhe que tinha que despi-la, mexer-lhe, pôr-lhe um soro, algalia-la. Tudo isto por gestos, com sorrisos, com festas na cara como que a dizer-lhe que estava ali e ia ajuda-la, ia cuidar dela. Ele não arredava pé. Sempre por perto, quase que a impedir-me de lhe tocar tamanhas eram as dores que isso lhe provocava. Tentei explicar-lhe, pensei na linguagem universal que nos une enquanto humanos, a única que nos poderia aproximar naquele momento.

Horas de trabalho árduo depois deixei-os no quarto. Disse-lhes que dormissem, que amanhã se resolveria o resto, que no botão vermelho bastava tocar para eu aparecer a qualquer hora.

Quando os voltei a espreitar por volta das 6h, ele estava descalço, de calças de fato e tronco nu ao lado da cama dela. Com a cabeça encostada à dela, como se este toque lhe pudesse dar o colo que ela precisava. E pensei no amor, sempre ele. Como a melhor coisa da vida, no companheirismo, na amizade que cura corações rompidos da pele ao músculo. Pensei que os analgésicos até a tinham aliviado, mas ali ao seu lado ela tinha o melhor curativo do mundo, o amor. Fiquei parada à entrada do quarto, comovida, grata por poder presenciar de perto algo tão inspirador, tirar a minha própria lição daquilo que via.

Quando me aproximei ele continuou ao seu lado. Enquanto inevitavelmente lhe causava algumas dores com a medicação da manhã, continuaram aos beijinhos, ele com o braço enrolado de volta da cabeça dela, curvado na cama, velhinho, cansado, descalço e em tronco nu. Sempre ali, sempre juntos.

 
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