sábado, 15 de dezembro de 2012

U.


“Lembra te de mim como alguém que já não conseguia rir e que se rio muito por dentro contigo a cantar Beatles”.
 Foi assim que se despediu de mim hoje. Ele que passa grande parte dos turnos a gritar de dor fantasma. Enchi-me de tristeza por ser incapaz de o aliviar de tamanho sofrimento dia após dia. Um doente encantador mas muito sério, com um cabelo branco reluzente, que odiava levantar-se para tomar banho, luz no quarto e comer. Há umas semanas atrás ainda gostava de me mostrar musica maravilhosa que ouvíamos os dois como terapia durante horas de tratamentos agressivos, depois foi deixando de querer qualquer contacto com o mundo exterior ao seu.
Ontem obriguei-o a sair da cama, gritou-me “não” milhares de vezes. Mas eu tive que o ignorar, tive que lhe ver a raiva nos olhos e ignorar, e esfreguei-o com água quente e sabão, fiz-lhe a barba com o olhar mais vazio e sério na direcção do nada que me lembro de ver num doente, obriguei-o a abrir a boca para lavar os dentes já cobertos de secreções acumuladas. Ele odiou-me. Hoje ardia em febre quando cheguei de manhãzinha perto dele. Pediu-me “por favor, não quero levantar-me”. Eu disse-lhe que não ia fazer nada que ele não quisesse. Pus música, ele disse que hoje podia ser eu a escolher, escolhi Beatles, cantei-lhe o “Let it be” enquanto o lavava parcialmente no leito e lhe mudava os lençóis da cama. Tão doente. Senti remorsos por o ter obrigado no dia anterior, pedi-lhe desculpas. “Dá-me um sumo de morango e eu perdoo-te” disse-me ele. Sorri-lhe e continuei a cantar…

 Let it be, let it be
Whisper words of wisdom:
Let it be

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