quinta-feira, 27 de outubro de 2011

F. senhora professora*

A primeira vez que a F. esteve internada no serviço era um verdadeiro bichinho carpinteiro. Não parava quieta nem se calava por um minuto, uma energia incrível para alguém tão doente quanto ela. Acabou por passar por mais uma cirurgia, vivia o seu terceiro cancro mas ela acreditava que ia ficar bem. Eu adorava falar com ela, uma senhora culta, professora primária, com uma amor por crianças incondicional, e por isso tínhamos sempre pano para mangas nas nossas conversas sem fim.

Ela acabou por ter alta, mas semanas depois voltou a ser internada. A F. vai morrer, percebi mal olhei para ela outra vez. O cancro tem cara, e numa fase terminal tem forma e tem cheiro, e quando a vi chegar ao serviço novamente, percebi que ele tinha ganho a batalha sobre ela.

Hoje a F. já nem comeu, já não fala nada, nem quando lhe peço que complete comigo as preposições… ainda puxo por ela, chamo-a de minha professora, digo-lhe que levantei o dedo e quero falar, começo a dizer-lhe, a, ante, após, até… e a seguir vem qual? Mas ela fica a olhar para mim, com um olhar perdido, e tenta falar mas perde-se, apaga-se e desiste. Faço-lhe sopinhas de leite com pão com manteiga como ela gostava tanto mas ela não quer comer. Ela não quer que lhe toquem, ela não quer tomar banho, ela não quer água.

O senhor doutor, mandou-me entubá-la hoje (era tão bom que ele perdesse algum tempo ao pé dela para perceber como isto é macabro) mas eu orgulhosamente recusei-me a faze-lo. Não o fiz nem farei, nem eu nem nenhum dos meus colegas (e que orgulho senti deles também). A F. não vai sofrer mais, no que depender de mim, vai ficar quentinha na cama, hidratada com soro, limpinha, cheia de amor e festinhas que não lhe cansamos de dar. E a morte há de chegar, e até vai vencer, mas não será com dor, nem sofrimento, nem com falta de mãos dadas à dela.

3 comentários:

Joana Teixeira disse...

Hoje a minha C. morreu. Deixou um bebé pequenino, uma menina de 4 e um marido e mãe desesperados. Passei a noite a achar q ela não estava bem mas tive esperança. À tarde não resistiu e eu não estava lá.
A vida e a nossa profissão às vezes é uma m*rda!

Carla Morais disse...

Que orgulhosa fico de vocês, foi um gesto muito bonito. E sim, como diz a Joana, deve ser muito difícil estar na vossa situação nestes momentos extremos... Que coragem! Mas é assim que sempre que leio estes testemunhos da Di me encho de alento pela vida (que é linda!) e me inspiro para todo o dia. Bem haja!

Patrícia disse...

é linda esta tua entrega! Que bom que é saber que há quem se preocupe e trate cada paciente como um ser humano e não como apenas "mais um"! Os meus parabéns :)

 
Site Meter