segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

J.

Faz hoje uma semana que o levantei da cama e o levei até à janela para juntos vermos o pôr-do-sol. Ao fundo do corredor do serviço, há uma janela grande de onde se vê um campo vasto quase até ao mar.
Falamos das cores que o pôr-do-sol tem, e que só quem presta atenção as consegue decifrar. Ele assentou no horizonte um olhar profundo, penetrado, enquanto revivia comigo e me contava como o marcou tê-lo visto em Angola, como jamais o esqueceu. Falou das cores e do cheiro dessa terra ao fim do dia, quando o sol começava a ir… E de como gostou de o ver ao lado da primeira mulher nas longas viagens que fizeram juntos de mota pela costa de Portugal fora.
 Tinha um sorriso cativante, os olhos pretos rasgados por rugas profundas, e quando falava olhava-me nos olhos, quando sorria o sorriso cobria-lhe todo o rosto. Sorria para mim… Estas aí a pegar na garrafa de oxigénio para que eu possa estar aqui, mal podes com ela rapariga.
Eu sorria-lhe de volta e insisti para que se mantivesse lúcido comigo, naquele momento. Uma das minhas mãos nas costas dele a ampará-lo na cadeira de rodas, ele na resistência ao cansaço. Corrigiu-me, quando chamei vermelho ao laranja, disse-me para reparar com atenção. Ali ficamos os dois até que o céu foi ficando cada vez mais escuro e a noite chegou.
Pouco depois voltei a deitá-lo na cama de onde nunca mais saiu. Desde então e até sábado, deixou de querer comer, deixou de querer falar, sexta deixou de abrir os olhos quando o chamava e lhe perguntava se tinha dores.
Sábado, no final do turno da noite, partiu. Não sei quem ele foi, não sei quase nada da vida dele, os seus gostos, as pessoas de quem gostava, as que o marcaram, os livros que mais gostou de ler, as suas viagens, os seus amores, as alegrias. Nada, não sei nada, não partilhamos nada, passamos pouco mais de umas horas juntos, mas fui importante nos últimos momentos, estive com ele a ver o último pôr-do-sol, talvez no último momento de lucidez e de vida verdadeira. É por isso que me é impossível despir a farda de ânimo leve, sem que comigo para casa não carregue a dificuldade que ainda tenho de saber lidar com a morte, não porque ela os leva, mas porque sou obrigada a, silenciosa e demoradamente a ver e sentir chegar.

3 comentários:

Carla Morais disse...

Querida Di, sem lhe poder aliviar essa dor (acho que ninguém pode) gostava de pelo menos lhe dar um bem-haja pelo carinho que dedica aos pacientes. Só me ocorre que seja uma espécie de enviada divina, um anjo...

Dulce disse...

Tu não imaginas quanto eu gosto de ti, Diana!

Bacouca disse...

Querida Di,
Eu sei que não consegue despir a bata e esquecer a dor de ver alguém partir...Sei porque a conheço bem e sei como sente esse coração! É como você bem a retrata:"ser obrigada silenciosa e demoradamente a ver e sentir chegar". Felizes daqueles que por qualquer infortuno a têm a seu lado!
Tadoro
Beijo
Mãe Becas

 
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