Bom dia Sr. J.
- Eu hoje.
Dormiu bem?
- Eu hoje eu hoje eu hoje.
Este doente lá do centro é um amor. É muito carinhoso e comunicativo. As únicas palavras que utiliza para se expressar verbalmente com o mundo são apenas duas: eu e hoje.
Fala com a mulher ao telemóvel durante muito tempo e eu penso como o amor entre dois seres humanos os torna tão transparentes um para o outro. Conversa sempre muito com ela antes de dormir e eu oiço da sala de enfermagem: eu hoje eu hoje, eu hoje hoje eu hoje, eu hoje eu hoje, eu.. hoje, eu hoje.
Quando ela está lá no serviço falam muito! Ela entende tudo o que ele diz. Observa-o e interpreta-o. Depois traduz-me. :)
Mas ela hoje não estava lá. E a meio da manhã o Sr. J. fugiu do ginásio, devagarinho na sua cadeira de rodas e veio ter comigo ao internamento.
- eu hoje eu hoje eu hoje eu hoje.
Então Sr. J que se passa? Tem sede? Dor?
- eu hoje eu hoje eu hoje eu hoje.
Começo a corar.
Tem que ir pró ginásio são horas de trabalhar, vamos lá eu vou consigo.
Travou a cadeira de rodas e continuou.
- eu hoje eu hoje eu hoje! Eu hoje.
Fez cara triste.
EU HOJE EU HOJE EU HOJE!
Caraças!
(A maioria dos meus doentes tem muitas incapacidades. E esta da fala, ou da falta dela é muito difícil de ser superada. Isto porque a maioria também não consegue escrever, nem coordenar os movimentos da mão de forma a fazer um desenho. É difícil por isso compreende-los, saber exactamente o que precisam. E se no início de um turno fazemos de tudo para ir adivinhando, há alturas em que a quantidade de trabalho e por isso a falta de tempo, não nos deixa muitas alternativas. Aqui cresce uma agonia dentro de mim. Isto porque eu não sei se eles tem noção de que não conseguem verbalizar mais do que uma, duas palavras.)
Assim sendo resolvi deixar o S. J guiar me. E disse-lhe:
Vamos a procura do que lhe faz falta. Pus-lhe a mão no ombro e seguimos caminho os dois rumo ao quarto.
Apontou para a gaveta. Abri. O carregador do telemóvel!
Parece tão fácil não?
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8 comentários:
O que é fácil é perceber que estás no emprego certo, e que eles, apesar de tudo, são uns sortudos ;)
Beijinhos
Eu Ontem, Eu Hoje, Eu amanhã... madita tecnologia! Malditos telemóveis... val que servem para situações destas!
David.
Minha querida mal sabia eu que ontem ao falarmos no messenger tinha vivido ou iria viver um caso que no seu mais profundo ensinamento tem a palavra: amor. Amor entre um casal. Mas há sinais...Titulo de um livro que adoro e que ao ler o seu relacionamento e a historia que conta peguei novamente nele para transmitir:
Bem-aventurada a Di que com um sorriso nos lábios me estimula ao seu convivio;
Bem-aventurada a Di que nunca me faz sentir que repeti hoje várias vezes a mesma pergunta;
Bem-aventurada a Di que compreende a dificuldade que tenho em expressar por palavras ou meus sentimentos;
Bem-aventurada a Di que me escuta, por considerar que tenho algo a dizer;
Bem-aventurada a Di que sabe interpretar o que sente o meu coração, ainda que eu não possa expressar os meus sentimentos;
Bem-aventurada a Di que me respeita e me ama tal como eu sou e não como desejaria que eu fosse;
Bem-aventurada a Di que me olha e discretamente faz que não tenha visto que deixo cair comida fora do prato;
Bem-aventurada a Di que reconhece que os meus ouvidos têm que fazer um esforço para compreenderem o que ouvem;
Bem-aventurada a Di que compreende o meu estranho andar e as minhas mãos descontroladas.
Encaixa-se no amor que sei que transmite a todos e sei que todos concordam comigo. É uma pequena homenagem que eles ficam gratos que eu, que a conheço tão bem, lhe transmita. BEM-AVENTURADA DI.
Mil beijos BACOUCA
-
És incrível, Di!
Que grata me sinto por ter-te encontrado aqui.
Eu hoje.
Sabes leio isto e releio e só me dá vontade de chorar como na primeira vez que o li. Tu sabes. Dá-me vontade de chorar a cada palavra. Vejo-te nos corredores, vestida de branco. Os profissionais de saúde usam uniformes brancos para se assemelharem a anjos, não é? Tu és um anjinho, tão pequenina e tão forte. Minha. Minha. Sou milionária de te ter.
Pronto...
:)*
Olá, vim aqui parar e gostei deste post. Diz-me muito, porque o meu único irmão, saudável até aos 17 anos, adoeceu gravemente ao ponto de estar totalmente dependente de outrém. Não fala, não anda, não tem coordenação motora, mas tem noção do que se passa à sua volta.
A princípio, foi difícil comunicarmo-nos com ele. Mas depois, ele ensinou-nos a melhor maneira. Ora piscava os olhos, ora indicava com o dedo. Aos poucos, vamos percebendo o que ele quer dizer.
Por vezes, torna-se difícil. Mas tentamos sempre dar a volta.
Bem-hajas pelo teu trabalho.
eu hoje dei um passinho de cada vez...mais que ontem, menos que amanhã!
este post fez-me "crescer"
:)
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